6.12.05

A formiga e a cigarra


No mundo dos gregos antigos, a agricultura estava ainda numa fase de rudimentaridade avançada. Os ecossistemas agrícolas eram diversos e saudáveis, com as plantas silvestres indígenas e as prósperas colónias de insectos a partilhar o espaço com as culturas domesticadas. Daqui resultava que as searas e as vinhas estavam cheias de insectos vigorosos, afoitos e bem falantes. De todos o mais laborioso era sem dúvida a formiga. Todo o santo Verão labutava à torreira do sol, acarretando cereais e sementes para a sua despensa, na antevisão de um Inverno prolongado.
No mesmo campo vivia uma cigarra cuja vida era muito livre de cuidados, dado que há muito tinha rejeitado o conceito burguês, ganancioso, do “ganhar a vida”. Para ela, a existência ideal era a que consistia em usufruir da natureza em moldes, duma exploração não estruturada e folgazona, de que muitas vezes tirava o melhor partido, passando a maior parte do dia a dormir. Outras vezes cantava alegremente nas searas, chuRRIIP, chuRRIIPP, assim mantendo viva a rica tradição oral das cigarras.
Esta atitude alternativa não passava despercebida à formiga, entregue à sua azáfama ao calor e ao pó. Quando via a cigarra a gozar a vida, sentia um frémito de raiva em todos os orifícios do seu exosqueleto.
“Olha-me para aquela cigarra”, murmurava a formiga de si para consigo. “Passa o dia sentada sobre o abdómen, a cantar as suas cantigas de cana rachada. Quando será que ela vai dar algum sinal de responsabilidade? Chamar-lhe sanguessuga seria um insulto a todos os vermes segmentados e trabalhadores deste país. Esta limita-se a vigiar-me, à espera de oportunidade para me assaltar e me roubar tudo o que eu juntei com tanto trabalhinho. É o que fazem os da laia dela.”
Por seu turno, a cigarra estava a olhar para a formiga, mas numa linha de pensamento completamente diferente. “Olha-me para aquela formiga”, pensava ela, “o que ela trabalha para juntar uma pobre reserva de cereais. E afinal para quê? Se ao menos tentasse entrar numa um pouco mais Zen, iria perceber que para a pedra tanto faz um grão como mil e que a chuva nunca tem de se preocupar com a sua caligrafia.”
E assim se passou o Verão. A formiga, uma personalidade de tipo A sem tirar nem pôr, passou os dias num frenesim de trabalho, mas a sua actividade egoísta e socialmente irresponsável fez-se pagar. A formiga contraiu uma úlcera péptica, apanhou uns valentes sustos por causa dumas dores no tórax e perdeu quase todos os pêlos que tinha no alto da cabeça. Em meados de Setembro, o marido saiu de casa para ir comprar sais de frutos e nunca mais lhe apareceu. A formiga deixou-se de tal maneira obcecar pela sua reserva de cereais que foi ao ponto de instalar um sofisticado sistema de segurança no interior e área circundante do seu formigueiro, com câmaras de vídeo e sensores de movimento capazes de capturar qualquer presumível ladrão.
Entre sestas, a cigarra observava tudo isto com desprendida curiosidade. Ao mesmo tempo estudava yoga, esquadrinhava a zona em busca da chávena ideal para fazer cappucino, aprendeu a tocar viola sem mestre (a bem dizer, só uma canção, que ela própria escreveu, em estilo blues, com três notas) e principalmente mandriava. E procurava que o seu estilo de vida centrado no lazer se adequasse ao fluir das estações. Quando o tempo começava a ficar mais desagradável, começava ela a fazer planos de ir fazer surf para Austrália.


Continua em "Contos de Fadas Politicamente Correctos" de James Finn Garner

(Se pedirem muito um destes dias conto o resto.)

Ou então vejam aqui a versão brasileira.

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